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Unesp - Novos olhares sobre Luiza Mahin e Dandara

 






Pesquisas históricas lançam novos olhares sobre Luiza Mahin e Dandara

Ambas se tornaram as primeiras mulheres negras a terem seus nomes registrados no Livro de Heróis da Pátria. Análises de fontes documentais registram a existência de Mahin, mas o debate sobre Dandara, que se tornou conhecida a partir de uma obra de ficção, segue em aberto.

Heróis, vilões, migrações, tragédias e vitórias: é a memória dos eventos de grande significação coletiva que forma o barro com o qual os países moldam suas identidades. O trabalho de mergulhar nestas memórias é tarefa dos historiadores profissionais, sobre os quais recai a missão de separar fato de fábula. Graças a eles, nossa visão do passado é continuamente atualizada, e não é incomum que um personagem até então classificado como histórico passe a ser apresentado como criação do imaginário popular de certa época, e vice-versa. Na historiografia brasileira, dois debates em andamento envolvem as figuras de Dandara dos Palmares e Luiza Mahin. E, no caso desta última, pesquisas divulgadas recentemente tanto confirmam quanto contradizem ideias que circulavam sobre sua biografia há décadas.

Dandara dos Palmares e Luíza Mahin tiveram seus nomes registrados no Livro de Aço dos Heróis da Pátria em 2019, por meio de uma lei aprovada pelo Senado. No texto inscrito no livro, que fica em exposição no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, Dandara dos Palmares é descrita como “esposa” de Zumbi dos Palmares. Já Luíza Mahin é mencionada como a mãe do abolicionista Luiz Gama (1830–1882), que “liderou os escravos malês na Bahia, tendo participação decisiva na Sabinada.” Até então, nenhuma mulher negra figurava no rol oficial de heróis da pátria. Porém, até bem pouco tempo atrás, ambas as mulheres tinham suas existências contestadas por falta de comprovação documental.

Dandara dos Palmares teria sido uma guerreira negra do período colonial brasileiro, atuante no Quilombo de Palmares (16??–1695), na Serra da Barriga, nos atuais estados de Alagoas e Pernambuco. Celebrada como a grande liderança feminina da resistência quilombola, ela teria se casado com Zumbi e, supostamente, teria morrido na batalha de 1694, que culminou com a destruição da cidadela de Macaco, em Palmares. Luíza Mahin, outra referência do feminismo negro brasileiro, além de ter sido escravizada e mãe de Luiz Gama, teria tido participação relevante na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837–1838), ambas ocorridas na Bahia.

Luiza Mahin, da sombra dos arquivos ao reconhecimento factual

Por décadas, Luiza Mahin oscilou entre o status de “mãe mítica” do abolicionista Luiz Gama e de personagem emblemática das lutas negras pela liberdade – mas sem documentação que provasse, de fato, sua existência. Recentemente, o cenário mudou drasticamente. Investigações da pesquisadora independente Lisa Earl Castillo e da professora e pesquisadora da UFBA Wlamyra Albuquerque lançaram luz sobre a vida real dessa mulher africana.

O trabalho das pesquisadoras foi pioneiro ao localizar registros primários inéditos, como o testamento de Maria Rosa de Jesus, mulher branca que era tia-avó de Luiz Gama por parte de pai, no qual se descreve explicitamente Luiza Mahin como “cativa nagô” – confirmando sua condição de escravizada. As descobertas e interpretações das pesquisadoras estão no artigo “Família, Insurgências e Contravenções: Memória e História de Luiz Gama na Bahia” publicado na Revista Afro-Ásia, este ano.

“É importante fazer uma distinção entre o que Luiz Gama coloca em sua famosa carta autobiográfica e as narrativas que surgiram depois. Nas palavras dele, não existe afirmação direta de que a mãe tivesse sido ‘africana livre’; ao contrário, há indícios de que a narrativa sobre sua liberdade foi uma construção posterior”, observa Lisa Earl Castillo. Ela explica que a ausência de documentos sobre a liberdade de Luiza possivelmente está vinculada à estratégia política do filho, que buscava dissociar suas raízes do cativeiro para reforçar sua autoridade abolicionista.

“A condição de ‘nagô cativa’ que encontramos nos registros contradiz justamente essa versão. Mas não se trata de diminuir, e sim de ancorar a história em fatos concretos”, destaca a pesquisadora.

Outra nuance levantada pelas autoras reside na própria origem do nome “Mahin”. O trabalho detalha que, diferente do que propagam alguns romances e a tradição popular, Mahin não indica ascendência jeje-mahi, mas remete a uma pequena região iorubá próxima a Lagos, na Nigéria – o que está em sintonia com a indicação “nagô” reconhecida no testamento. “Essas descobertas não desvalorizam Luiza Mahin. Mostram que, antes de se tornar símbolo da resistência e referência mítica dos movimentos negros, ela foi uma mulher real, marcada pela violência do cativeiro e imersa na Bahia do século 19”, afirma Lisa.

Ana Maria Gonçalves transformou em ficção premiada a história de Luiza Mahin. Crédito: Agência Brasil

No entanto, ela pondera sobre como o processo memorialista transformou a figura de Luiza Mahin. “O discurso feminista negro, sobretudo após a ditadura militar, já apropriava a imagem de Luiza e a reinventava como heroína revolucionária. Posteriormente, veio o romance de Ana Maria Gonçalves [Um Defeito de Cor, publicado pela Record em 2006], as escolas de samba [a Mangueira homenageou-a em 2019 e a Portela, em 2024]; tudo isso ajudou a solidificar sua presença como símbolo. Essa transformação é parte da história de como o passado é reapropriado conforme a necessidade política e cultural.”

Silvia Hunold Lara, especialista em Palmares, professora aposentada e atual colaboradora no Departamento de História da Unicamp, ressalta a importância do trabalho minucioso de pesquisa feita pelas colegas para investigar Luiza Mahin. “O trabalho do historiador é técnico, detalhista. Examinar documentos originais, buscar o que está nos arquivos, comprovar o que é possível com base nos arquivos. E mesmo quando a documentação apresenta diferentes versões, cabe a nós analisar cada situação, distinguir o que pode ser demonstrado do que é memória ou tradição.” A trajetória de Luiza Mahin comprova, assim, a força que a pesquisa histórica tem de enriquecer o legado de protagonistas negras, mesmo que isso signifique desmontar certos mitos forjados pela ausência de prova documental.

“O que os historiadores querem saber sobre o passado não é confirmar ou desconfirmar, dizer o que está certo ou errado – esse não é o objetivo. Nós lidamos com o passado e com a documentação que restou das ações humanas para estabelecer perguntas específicas e discutir possíveis respostas”, diz Silvia.

Dandara, da invenção romanesca ao símbolo reconhecido

Se a pesquisa histórica conseguiu, no caso de Luiza Mahin, firmar o chão factual de sua existência, o mesmo não aconteceu com Dandara dos Palmares. Nesse caso, a ausência de documentos é tão notável quanto significativa – e se torna, ela própria, objeto de análise.

Alcione Aparecida da Silva, doutoranda da UEM (Universidade Estadual de Maringá, PR) e pesquisadora, problematizou em um artigo a ausência de fontes primárias sobre Dandara. “Documentos oficiais da época colonial eram quase sempre controlados por elites brancas e masculinas”, analisa. “Mulheres negras, escravizadas, indígenas raramente aparecem, e nunca como protagonistas. Por isso, a ausência de documentação sobre Dandara não reflete a ausência de história, mas sim um processo sistemático de apagamento”, diz.

Alcione, juntamente com Eulália Maria Aparecida da Silva, é autora do artigo “Passados que não passam: Dandara, a mulher escravizada, trajetória e sua representação nos livros didáticos de história” , publicado na revista Hydra em 2023.

A pesquisadora, que crê na real existência de Dandara, diz que apagamento semelhante recaiu até sobre figuras bastante conhecidas da história brasileira, como Maria Leopoldina [imperatriz casada com Dom Pedro I] e Maria Quitéria [militar baiana que lutou na guerra que consolidou a Independência do Brasil, em 1823, na Bahia]. “Tudo era e é, até hoje, moldado pelo poder. Há uma estratégia de silenciamento, que tem raiz no machismo e no racismo”, diz Alcione. “Não se trata de mitificar sem evidências, mas também de não apagar por falta de um tipo ‘ideal’ de documento, desses que a elite registrava”.

Imagens ilustrativas de Zumbi e Dandara. Crédito: Agência Tribuna União

“Não há menção de Dandara nos documentos dos ataques a Palmares, que são centenas, talvez milhares de páginas feitas pelos portugueses e holandeses”, diz Lisa Earl Castillo, que estudou documentos originais de Palmares. “Quem aparece é Maria Moreira, mulher parda, mãe dos filhos de Zumbi. O nome Dandara, ao que tudo indica, foi criado em um romance mineiro dos anos 1960 [Ganga Zumba, de João Felício dos Santos, publicado em 1962]. Depois, ele entra para o imaginário coletivo, ampliado pelo filme Quilombo [Cacá Diegues, 1984]. Dandara surge da literatura, cresce no cinema e encontra espaço como símbolo”, analisa.

“A questão da Dandara é um bom exemplo do que Ney Lopes [pesquisador especializado em história dos negros no Brasil] coloca: ela é uma personagem de ficção, criada depois”, reforça Silvia Hunold Lara. A especialista cita o livro de Lopes, Enciclopédia brasileira da diáspora africana (Selo Negro, 2004), para explicar que o nome Dandara não é da África Central, hoje o Congo e Angola, de onde vieram a maior parte — “mais de 90%”, ressalta ela — da população escravizada que foi levada para Pernambuco nos séculos 16 e 17.

“Os negros de Palmares eram, em sua imensa maioria, provenientes do reino do Ndongo, falantes de quimbundo. O nome Dandara tem origem hauçá, da África Ocidental, é uma corruptela de ‘Dan Daura’”, diz Silvia. Na língua hauçá, ‘Dan’ significa ‘filho de’, ‘oriundo de’. E ‘Daura’ é uma área no norte da Nigéria, considerada centro espiritual do povo hauçá. Mas os hauças só chegariam em massa ao Brasil, majoritariamente na Bahia, na primeira metade do século 19, o que é mais um indício de que a personagem foi criada posteriormente. “São várias incongruências, mas isso não quer dizer que a Dandara não existiu. Não há documentação sobre ela no século 17.”

Para a historiadora, a verdadeira força histórica de Dandara está em seu uso pelos movimentos sociais negros. “Há outra existência da Dandara. Na história do movimento negro, é uma referência importante, tem uma simbologia cultural e social, e não podemos ignorar esse fato. Não posso dar uma carteirada de historiadora dizendo que ela não existiu. Hoje há milhares de mulheres negras chamadas Dandara por causa da personagem, ela é concreta”, diz.

Sobre a tradição oral e seu papel, Lisa Earl Castillo explica: “O anseio pelo resgate das informações às vezes leva as pessoas a não serem criteriosas: repetimos versões, introduzimos novidades, e com isso nasce uma tradição. Muitas vezes, nas tradições orais, as informações se tornam metafóricas ou condensam vários acontecimentos num só nome. Isso também é parte da história.”

O artigo de Alcione detalha como Dandara, apesar da possível origem ficcional, tornou-se poderosa no imaginário coletivo: “Sua história é ferramenta de empoderamento, enfrenta o apagamento da história das mulheres negras, promove a resistência em sala de aula e empodera novas gerações”, diz.

A questão simbólica é central. “Do ponto de vista cultural, do movimento negro, da autoafirmação, acredito que é importante resgatar as histórias dessas personagens”, diz Lisa. Ela pondera que esse fenômeno, no entanto, não deveria ocorrer “em detrimento das figuras reais, como Maria Moreira, mãe dos filhos de Zumbi, que nunca ganhou destaque equivalente”. Por isso, defende que Maria Moreira também deveria ser reconhecida no Livro de Aço dos Heróis da Pátria. “Ela existiu e lutou por Palmares”, diz Lisa.

Quando a ficção constrói a história

Muitas dessas novas descobertas acadêmicas lançam mão de novas técnicas de pesquisa. Além da extensa revisão bibliográfica sobre determinado assunto e da leitura de documentos antigos, hoje também há o estudo de relatos orais e pesquisas cruzadas de documentos — com a digitalização de vários acervos ao redor do mundo, tornou-se mais viável encontrar referências a certos eventos e personagens em, por exemplo, correspondências de época que estejam guardadas em outros países. A Universidade de Leiden, na Holanda, por exemplo, tem um extenso arquivo sobre o passado colonial do país.

Há ainda o entendimento crescente da importância de se estudar alguns personagens, mesmo que sejam fictícios. “Figuras fantásticas e imaginárias pertencem a outro plano: o do imaginário social de uma comunidade”, explica Denise Moura, professora livre-docente do Departamento de História da Unesp, no campus de Franca (SP). Nesse sentido, alguns personagens inventados são culturalmente muito importantes para determinados grupos sociais.

“O Frei Tomé é um bom exemplo”, diz a pesquisadora. “Indígenas que percorriam o território da antiga Capitania de São Paulo até o Paraguai tinham um ‘Caminho do Frei Tomé’, que aparece em mapas antigos. Ele jamais existiu, era uma recriação dentro do catolicismo indígena. Os indígenas convertidos criavam divindades que eram resultado do aprendizado do cristianismo, fundindo-as com sua própria cultura e sua relação com os espíritos da floresta, dos rios e dos animais”, prossegue ela. “Do ponto de vista social, é imprescindível estudar essas figuras. O Frei Tomé não existiu como pessoa, mas é pertinente estudá-lo para entender a cultura de uma época”, diz.

O caso de Dandara e o de outros personagens históricos – como Frei Tomé ou o escravizado mineiro Chico Rei – ilustram como as culturas populares se apropriam, transformam e reinventam figuras para dialogar com suas necessidades do presente. “A historiografia informa o currículo escolar, a cidadania e a política de memória. Ela reposiciona nomes como Dandara, Luíza ou Maria Quitéria e oferece outros espelhos de pertencimento para as novas gerações”, argumenta Alcione.

Sem perder o olhar crítico, Silvia Lara lembra que a “imagem de Tiradentes, hoje semelhante à de Cristo, foi construída pela propaganda republicana. Não corresponde ao que se esperaria para o século 18, mas a imagem se tornou importante para a República e para outros movimentos. Essa constante reinvenção mostra como a história é sempre também disputa de memória, identidade e poder”.

Imagem acima: Luiz Gama (à esquerda) e a foto de uma mulher de turbante, feita por Alberto Henschel, que passou a ser usada para representar Luiza Mahin. Crédito: Acervo IMS

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