Guterres: “Estamos em uma batalha global pela dignidade humana”
Discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, para a Assembleia Global da Anistia Internacional, em 25 de julho de 2025.
Dra. Agnès Callamard,
Sra. Guadalupe Rivas,
Sra. Bernardita Boock,
Representantes do Movimento Anistia Internacional,
Obrigado pelo convite.
É uma honra me unir a vocês hoje – e ser o primeiro secretário-geral das Nações Unidas a discursar em sua Assembleia Global.
Vejo este convite como um tributo à equipe da ONU que trabalha ao redor do mundo pelos direitos humanos e pela justiça.
E como um reflexo de nossa convicção compartilhada e fundamental na dignidade e no valor iguais de cada pessoa – um princípio fundador de nossas duas organizações.

Queridas amigas e amigos,
Certa manhã, no início dos anos 1960, um advogado britânico abriu seu jornal a caminho do trabalho.
Ele leu que a ditadura que então governava meu país – Portugal – havia prendido dois estudantes.
O "crime" deles: fazer um brinde à liberdade.
O advogado – Peter Benenson – ficou tão indignado com essa injustiça que lançou um movimento global.
Assim nasceu a Anistia Internacional.
Desde então, vocês estão na linha de frente da luta global por direitos humanos – de forma destemida, com princípios e incansavelmente:
- Lutando pela libertação de prisioneiros de consciência;
- Contribuindo para a criação de instituições e tratados internacionais, como a Convenção contra a Tortura;
- Defendendo todo o espectro de direitos humanos – civis, políticos, sociais, econômicos e culturais;
- Conquistando vitórias históricas por justiça – e recebendo o Prêmio Nobel da Paz.
O trabalho da Anistia reflete verdades que vivi sob uma ditadura:
Que a moralidade exige coragem para enfrentar a opressão.
Que solidariedade e justiça são pessoais e globais.
E que a luta pela liberdade em um continente ecoa em todo o mundo.
Vi isso acontecer – quando as lutas de libertação na África ajudaram a pôr fim à ditadura portuguesa.
Hoje, essas verdades são mais urgentes do que nunca.
Forças poderosas se levantam contra os direitos humanos – e contra o sistema internacional construído para protegê-los.
Vemos ataques à Corte Penal Internacional.
Ataques ao sistema internacional de direitos humanos e aos seus representantes.
E flagrantes violações do direito internacional:
- Dos horrores no Sudão e além…
- À invasão da Ucrânia pela Rússia – onde é urgente uma paz justa e duradoura, com base na Carta da ONU, no direito internacional e nas resoluções da ONU;
- E, claro, o ataque implacável de Israel contra Gaza.
Parabenizo a Anistia Internacional por suas vozes firmes.
Desde o início, condenei repetidamente os ataques terroristas horrendos de 7 de outubro cometidos pelo Hamas.
Mas nada justifica a explosão de morte e destruição desde então.
A escala e o escopo são inéditos em tempos recentes.
Não consigo explicar o nível de indiferença e inação da comunidade internacional.
A falta de compaixão. A falta de verdade. A falta de humanidade.
Funcionários da ONU continuam a atuar em condições inimagináveis. Muitos dizem que já não se sentem nem vivos nem mortos.
Crianças falam em querer ir para o céu, pois lá, dizem, há comida.
Fazemos chamadas de vídeo com trabalhadores humanitários que estão visivelmente famintos.
Isso não é apenas uma crise humanitária.
É uma crise moral que desafia a consciência global.
Continuaremos a nos manifestar sempre que possível.
Mas palavras não alimentam crianças famintas.
A ONU está pronta para aproveitar ao máximo um cessar-fogo para ampliar dramaticamente as operações humanitárias em Gaza – como fizemos durante a pausa anterior.
Nossos planos estão prontos e finalizados.
Sabemos o que funciona – e o que não funciona.
Desde 27 de maio, a ONU registrou mais de 1.000 palestinos mortos tentando acessar comida.
Repito: mil pessoas – mortas não em combate, mas por desespero – enquanto toda uma população enfrenta a fome.
Precisamos de ação:
- Um cessar-fogo imediato e permanente.
- A libertação imediata e incondicional de todos os reféns.
- Acesso humanitário imediato e sem impedimentos.
Ao mesmo tempo, precisamos de medidas urgentes, concretas e irreversíveis rumo à solução de dois Estados.
Queridos amigos,
Estamos em uma batalha global pela dignidade humana.
Pelos direitos humanos.
Pela justiça.
Pelo próprio sistema multilateral.
A Anistia Internacional é indispensável nessa luta.
Minha mensagem central a vocês hoje é esta: o mundo precisa de vocês mais do que nunca.
Precisamos da coragem, criatividade e clareza de vocês.
Dos seus movimentos – enraizados nas comunidades e construídos de baixo para cima – deixando claro que líderes não podem ignorar suas obrigações.
E sim, precisamos do que vocês chamam de “incomodar o sistema”.
Do tipo que desafia a complacência e a inação.
Que expõe injustiças.
Que impulsiona mudanças duradouras.
Porque, ao olhar para o mundo, vejo líderes demais que tratam os direitos humanos como um problema.
Mas sabemos que os direitos humanos são a solução.
Eles são a base da paz.
O motor do progresso.
O caminho para sair do conflito e do caos em direção à segurança e à esperança.
Vocês sabem melhor do que ninguém: esse trabalho nunca é fácil.
E a luta é sempre mais difícil quando mais importa – quando a urgência é maior e os riscos, mais altos.
Mas quero assegurar a vocês: vocês não estão sozinhos.
Os direitos humanos são – e continuarão sendo – um pilar central da ONU.
Apesar dos desafios financeiros, estamos determinados a fortalecer os direitos humanos para o século 21.
A Iniciativa ONU80, baseada na Carta da ONU e no direito internacional, visa fortalecer nosso trabalho essencial em paz, direitos humanos e desenvolvimento.
Nosso Apelo à Ação pelos Direitos Humanos mobiliza todo o sistema ONU.
Diante da crise, devemos permanecer unidos – e agir juntos.

Quero me referir agora ao tema da Assembleia Global deste ano: enfrentar o avanço das práticas autoritárias e promover a justiça climática.
Primeiro – o autoritarismo.
Estamos vendo um aumento alarmante em táticas repressivas ao redor do mundo. E até democracias estão sendo contaminadas.
Não são eventos isolados. É uma contaminação global:
- Oposição política esmagada.
- Mecanismos de responsabilização destruídos.
- Igualdade e não discriminação desrespeitadas.
- O Estado de Direito deixado de lado.
- Enquanto isso, a sociedade civil – base de qualquer nação livre – é sufocada.
Vemos ativistas e jornalistas silenciados – até assassinados.
Minorias sendo usadas como bodes expiatórios.
Mulheres e meninas privadas de seus direitos mais básicos – brutalmente, no caso do Afeganistão.
E tudo isso ampliado por tecnologias digitais.
Devemos corrigir esses erros.
Alguns países continuam firmes na defesa dos direitos humanos – isso deve ser reconhecido.
Devemos pressionar todos os países a protegê-los – sempre, mesmo (ou especialmente) quando for inconveniente.
Devemos exigir a proteção e o fortalecimento do sistema internacional de direitos humanos.
E exigir responsabilização – sem medo ou favoritismo.
Devemos insistir para que os países cumpram os compromissos do Pacto para o Futuro – para proteger o espaço cívico e defender os direitos humanos e a igualdade de gênero.
Também devemos agir contra a avalanche de mentiras e ódio que polui os espaços digitais.
A manipulação nas redes sociais virou uma arma poderosa do autoritarismo.
Algoritmos estão promovendo o pior da humanidade – recompensando mentiras, alimentando o racismo e a misoginia, e aprofundando divisões.
No ano passado, a Assembleia Geral da ONU adotou o Pacto Digital Global, que compromete os países a aplicar os direitos humanos ao ciberespaço e a proteger a integridade da informação.
Devemos cobrar esse compromisso.
E ir além – reconstruindo a confiança no sistema internacional, com base em justiça, inclusão e resultados.
Isso inclui:
- Reformar o Conselho de Segurança da ONU – é um escândalo a África ainda não ter assento permanente.
- Cumprir a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
- E transformar o sistema financeiro internacional – com alívio da dívida, mais financiamento para o desenvolvimento e mais voz para países em desenvolvimento.
Aplaudo o trabalho da Anistia nesses temas, inclusive com a Comissão 2048 – que ajuda a construir uma ordem global mais justa e inclusiva.
Queridos amigos,
O segundo foco desta Assembleia é uma das lutas definidoras do nosso tempo: garantir justiça climática.
A crise climática não é apenas uma emergência ambiental.
É uma catástrofe de direitos humanos.
Devemos confrontar e corrigir injustiças profundas:
- Pessoas pobres, vulneráveis e marginalizadas sofrem mais – mesmo sem terem causado essa crise.
- Defensores e defensoras ambientais são presos, ameaçados e até mortos.
- Terras e meios de vida são saqueados na corrida por minerais para energia limpa.
- O financiamento climático ainda é totalmente insuficiente – enquanto os combustíveis fósseis continuam subsidiados.
Mas já vimos o poder da mobilização popular:
- Do papel da Anistia no reconhecimento internacional do direito a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável.
- Até vitórias judiciais que obrigam os Estados a agir.
Há dois dias, a Corte Internacional de Justiça emitiu uma opinião consultiva histórica.
Ela deixou claro: os Estados têm obrigação de proteger o sistema climático global.
A mudança climática é uma questão de direitos humanos.
E a meta de limitar o aquecimento global a 1,5 °C deve orientar as políticas climáticas.
Devemos isso aos jovens das ilhas do Pacífico – e precisamos transformar essas vitórias em ações concretas.
Isso significa:
- Redução urgente de emissões pelas maiores economias e emissores.
- Uma transição energética justa e com respeito aos direitos humanos.
- Novos planos climáticos nacionais (NDCs) alinhados com o limite de 1,5 °C.
Também precisamos proteger os direitos de povos indígenas e comunidades impactadas na exploração de minerais essenciais para energia limpa.
Não podemos aceitar um futuro energético limpo baseado em práticas sujas e violações de direitos – inclusive de crianças.
O Painel da ONU sobre Minerais Críticos para Transição Energética já traçou o caminho – com os direitos humanos no centro das cadeias de valor.
E precisamos de financiamento real:
- Para cortar emissões,
- Para adaptar-se aos choques climáticos,
- E para lidar com perdas e danos.
Governos devem cumprir suas promessas.
E buscar novas fontes – como precificação de carbono e taxas de solidariedade sobre setores poluentes.
Queridos amigos,
Como jovem vivendo sob uma ditadura, aprendi – como sabiam os fundadores da Anistia – que lutar pela liberdade é estar do lado certo da história.
Hoje, tenho mais certeza do que nunca:
Defender os direitos humanos é defender o que é certo.
Essa é a história de vocês.
Nos anos 1960, a luta por um mundo mais justo fervia:
- Por direitos civis.
- Por igualdade de gênero.
- Pela libertação do colonialismo.
Essas causas pareciam distantes. A própria democracia portuguesa parecia impossível.
Mas posso garantir: sua coragem muda vidas.
Sua persistência transforma a história.
Vamos em frente.
Vamos continuar lutando.
Vamos agir com a urgência que o momento exige.
E jamais, jamais desistir.
Muito obrigado por sua atenção e paciência.
Para saber mais, siga @onuderechoshumanos e @nacoesunidas nas redes e acompanhe a cobertura da ONU News em português: https://news.un.org/pt/tags/direitos-humanos
Discurso de

António Guterres
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